Fotografia by Né - Ribeira dos Caldeirões, Achada - Nordeste São Miguel Açores

sábado, 15 de agosto de 2015

São os "loucos" da minha cidade...


"Todos temos um lugar onde a vida se acerta. Cada mundo tem um centro. O meu lugar não é melhor do que o teu, não é mais importante. Os nossos lugares não podem ser comparados porque são demasiado íntimos. Onde existem, só nós os podemos ver. Há muitas camadas de invisível sobre as formas que todos distinguem."
José Luís Peixoto

Gosto de tomar um bom e descansado pequeno-almoço fora de casa. Pertenço àquele grupo de pessoas que acorda com o estômago tão encolhido que nem consegue pensar em comida sem o sentir sufocar, mas uma hora e tal depois de me levantar sabe-me bem sentar-me num sítio calmo, a desfrutar de uma boa dose de vitamina C e de um croissant. Qual é a dificuldade? Encontrar um lugar que tenha uma boa relação qualidade - atendimento. O desafio extra? Descobrir um cantinho sem os "loucos" da minha cidade…
Um dia destes, daqueles cheios de afazeres acumulados, levou-me a um estaminé diferente, nos arredores. Ainda não tinha estacionado, já um sem-abrigo com aspeto duvidoso me estava a dizer pelo vidro do carro se me podia pedir um favor. Ao entrar no café, uma senhora falava alto sozinha enquanto os presentes se riam, provavelmente já habituados àquele espetáculo de variedades matinal. Comecei a perceber que os loucos da minha cidade afinal também existem nos subúrbios.
Ao aproximar-me do balcão para fazer o pedido, um senhor de meia-idade, de roupas espampanantes e sorriso desdentado, trazia a louça das mesas do café e disse à menina do caixa: 
- Já viu? Hoje comecei o meu turno cedo!
Percebi que era comum o senhor contribuir na limpeza das mesas e não me consegui impedir de esboçar um sorriso… Fui apanhada! O referido indivíduo disse logo:
- Já falo consigo!
Tentei encolher-me, pedi o meu pequeno-almoço e apressei-me para uma mesa vazia, amaldiçoando a hora em que sorrira e, embora ansiando por uma refeição descansada, instruindo-me mentalmente para me apressar. Mas o senhor não me dava tréguas. Enquanto continuava a levantar louça das outras mesas, falava alto:
- Não pense que escapa! Eu vou ter uma conversa consigo!
Envergonhada e irritada, não sei bem se disse ou se apenas pensei:
- Por favor, deixe-me tomar o pequeno-almoço descansada!
Por fim, aquele sorriso quase sem dentes veio junto da minha mesa e disse-me:
- Não é nada de mal, menina. Não lhe quero roubar tempo. Só lhe quero dizer uma coisa e a menina vai gostar. E aposto que se vai rir. A menina é muito bonita!
Apanhada desprevenida, senti-me corar, mas sorri… Ele continuou:
- Eu não disse que a menina ia gostar? E sabe como é que eu sei que é bonita? Porque a menina sorriu para mim sem me conhecer. E quem faz isso é bonito por dentro! E sempre que alguém me faz isso eu tenho de falar com essa pessoa para lhe dizer! Tenha um bom dia!
E foi-se embora, sem me importunar mais. Fiquei embasbacada. Já não precisava da vitamina C do sumo de laranja para ter forças de enfrentar o próximo "louco" da minha cidade… E não demorou a aparecer:
- Ai, menina, se não se importa que me sente na sua mesa… Não gosto nada de tomar o pequeno-almoço sozinha. A minha filha…
Sorri… Não queria deixar de ser bonita!

sábado, 8 de agosto de 2015

Fendas...


"(…) todos temos fendas. Como se todos nós começássemos por ser um pequeno barco. Depois vão-nos acontecendo coisas: pessoas abandonam-nos, ou não nos amam, ou não nos percebem, ou nós não as percebemos a elas, e perdemos, falhamos e magoamo-nos uns aos outros. E o barco vai abrindo pequenas fendas. E, sim, quando o barco abre fendas, o fim torna-se inevitável. (…) Mas há imenso tempo entre o momento em que as fendas começam a aparecer e o momento em que finalmente nos afundamos. E é só durante esse tempo que podemos ver-nos uns aos outros, porque conseguimos ver para fora de nós mesmos através dessas fendas e para dentro dos outros através das fendas deles. (…) quando se abrem fendas no barco, a luz consegue entrar. A luz consegue sair."
John Green

Revejo-me nesta sucessão de metáforas. Ao longo dos anos, fui (e não fomos todos?) colecionando fendas. Este pequeno e frágil barco que sou há muito que deixou de ter um casco imaculado e resistente a todas as tempestades. Fustigado por ventos e marés mais agrestes, foi ficando com alguns rombos. Alguns foram tão grandes que temi o naufrágio das forças, o afogamento da alma. Mas aqui estou.
Por esses rombos fui espreitando e conhecendo outras embarcações como eu. Fui estendendo a mão e aceitando ajuda para os remendos ou esticando os braços e colaborando nas reparações dos outros. E assim fui (e vou) navegando, mais cautelosa e evitando mares desconhecidos para não ser apanhada em tempestades inesperadas.
Mas não desisti de procurar a luz. Quando ela se derrama pelas fendas do meu barco, agarro-me a ela. Às vezes é apenas um fogo-fátuo passageiro, de outras nem chega a ser um pirilampo. Instantes, dias, experiências, pessoas… Sempre que trazem raios de luz deixo-os aquecerem-me. E a travessia fica mais confortável e a pele da alma mais aconchegada. Prossigamos...